segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Pedaços.



               Espalmadas contra as capas, encontravam-se as mãos. Seguravam a raridade adiquirida em um sebo qualquer, como quem segura ouro. Capa gasta, marcada, envelhecida, manchada. Repleta de tempo, repleta de sonhos, repleta de diversão. Tudo isso sem abrir o tal livro muito, muito difícil de achar, pensava ele. Então flexionou seus polegares como quem acaricia outro alguém, traçando-os pela extensão das páginas prensadas. Estava reconhecendo-as, mesmo nunca tendo visto. Pressionou então os matadores de piolhos, criando uma fresta. Frestinha, fresta, frestona. Página aberta. Capítulo? O oitavo. Página noventa e nove. Ele seguia com os olhos de forma aflita, desejando aquelas linhas, como você deseja agora: 

"Eu estava na praia olhando o mar, o mar, o mar vomitando o mar, e agora já não é fácil atravessar de volta a avenida. Sei que passa um pouco de meio-dia porque o movimento dos carros é intenso por igual nos dois sentidos. Levo dez ou vinte minutos retido no canteiro central, junto de um poste com anúncio de cigarro e relógio digital enguiçado, os números inacabados parecendo estranho alfabeto. Alcanço e balanço o portão de ferro forjado do prédio de minha mãe, que o porteiro vem abrir andando depressa e chegando devagar, como um boneco de corda." 

Estorvo, Chico Buarque, 1991.

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