sábado, 19 de fevereiro de 2011

Erva daninha, danosa, divina.

Como já cantarolava em ritmo de bossa aquele personagem antagonista das minhas ideias, algumas coisas devem ser abafadas por uma bigorna, como os desejos devem ser supitados. Deste momento em diante, tomo como referência esse ser que só ficava sentado no meio fio. Não em um exatamente, não só naquele. Da borda, do margeado relevante dos meus planos e lamentos, o antagonista sussurra e por isso eu nunca o havia escutado. Então, tomarei partido com o arregaçar das mangas verdes, não as frutas, mas as da camisa, e deixarei essa tonalidade que sobra, como relembrei ter visto em uma fala de curta-metragem, se apagar. Mandarei-a para a extremidade pra que o meu amigo-temporáriamente-sem-nome faça o papel sujo, já que ele vive nas sombras. Apague o verde, digo. Apague o verde e o cheiro dele. O cheiro de alecrim e hortelã e a brisa que contorna o meu nariz com essa essência que vem de longe. Chute tudo pela minha mente onde você só sobrevive, até que esses planos, ideias, cheiros, lembranças e desejos vazem pelos meus ouvidos. Depois disso, feche a porta. Entendido?
Entendido, mon ami. Fecharei as janelas, essas pestanas arregaladas, também. Só tome partido e não deixe nada para o futuro. Faça-o já. Preciso arregaçar as mangas, não as frutas, já que as mangas agora são sem-coloração-aparente.
Fechei as pestanas.
Não, as janelas.
Fechadas.
Trancadas.
E deixarei tudo assim.
O que é aquilo, mon ami? Uma erva daninha?
Erva daninha?
Não se assuste, ela é amarela.
Amarela com cheiro morno de saudade, de ausência, de conforto, de sentimento-gostoso-sem-definição. O que fará, já que deixo em suas mãos?
Jogarei a bigorna. Soprarei em seguida. Tudo fluirá como nota musical, atravessará as frestas das janelas e assim será, de hoje em diante. Adiante, mon ami. Adiante.
Adianto que terá de caminhar um pouco mais pelas entranhas do meu ser, amigo-temporáriamente-sem-nome. Sinto o verde, ainda. Sinto a presença do dragão.
Sinto que preciso de outra bigorna.
Pare de sentir.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Bebi

Bebi a sua ausência. Desceu rasgando, gosto amargo. Gosto do amargo. Bebi você e a sua falta causada.
Acabou.
O copo esvaziou.
A última gota não caiu, resquício de você.
Há dias, beber não tem sido tão bom. Desce como a água que flui pela torneira.
Sua gota evaporou.
Não acho mais a ondulação nos teus olhos. Não bebo mais desse brilho que tremula entre a criação de uma ilusão e a decepção dela, seguindo de outra criação e outra decepção, criação, decepção, criação, decepção...
Nem amargo me restou.
Garganta seca, trancada.
Acaba ausência, acaba. Vem umidecer meus lábios - que sangram de rachados - com o doce do teu riso, vem. Acaba, ausência. Acaba.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Pedaços.



               Espalmadas contra as capas, encontravam-se as mãos. Seguravam a raridade adiquirida em um sebo qualquer, como quem segura ouro. Capa gasta, marcada, envelhecida, manchada. Repleta de tempo, repleta de sonhos, repleta de diversão. Tudo isso sem abrir o tal livro muito, muito difícil de achar, pensava ele. Então flexionou seus polegares como quem acaricia outro alguém, traçando-os pela extensão das páginas prensadas. Estava reconhecendo-as, mesmo nunca tendo visto. Pressionou então os matadores de piolhos, criando uma fresta. Frestinha, fresta, frestona. Página aberta. Capítulo? O oitavo. Página noventa e nove. Ele seguia com os olhos de forma aflita, desejando aquelas linhas, como você deseja agora: 

"Eu estava na praia olhando o mar, o mar, o mar vomitando o mar, e agora já não é fácil atravessar de volta a avenida. Sei que passa um pouco de meio-dia porque o movimento dos carros é intenso por igual nos dois sentidos. Levo dez ou vinte minutos retido no canteiro central, junto de um poste com anúncio de cigarro e relógio digital enguiçado, os números inacabados parecendo estranho alfabeto. Alcanço e balanço o portão de ferro forjado do prédio de minha mãe, que o porteiro vem abrir andando depressa e chegando devagar, como um boneco de corda." 

Estorvo, Chico Buarque, 1991.

Pedaços.

Dos grandiosos. Trechos, partes. Aleatoriedade de número 1:

          "A primeira vez que o telefone tocou ele não se moveu. Continuou sentado sobre a velha almofada amarela, cheia de pastoras desbotadas com coroas de flores nas mãos. As vibrações coloridas da televisão sem som faziam a sala tremer e flutuar, empalidecida pelo bordô mortiço da cro de luxe de um filme antigo qualquer. Quando o telefone tocou pela segunda vez ele estava tentando lembrar se o nome daquela melodia meio arranhada e lentíssima que vinha da outra sala seria mesmo "Desespero agradável" ou "Por um desespero agradável". De qualquer forma, pensou, desespero. E agradável." 

Fragmentos, Caio Fernando Abreu - Pela passagem de uma grande dor, página 102, parágrafo primeiro.




É interessante dizer que os textos denominados "Pedaços" resultaram de um pedido afetuoso. Como tenho prediletos, a abertura dos mesmos se deu com gosto. As partes em questão, são dos grandiosos, como citado anteriormente.



segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

3:43


Estava exasperada. Esticou-se sobre os lençóis, estendeu os braços e alcançou o travesseiro. Juntou as pestanas em uma pressão fervorosa enquanto repetia mentalmente ‘Perspectiva! Preciso de perspectiva!’ Envolveu a almofada retangular entre seus pequenos braços e, como quem aperta algo pra que se torne parte, afundou a almofada retangular contra seu miúdo tórax. Respirou fundo. Uma, duas, três vezes. É controle, autocontrole. ‘Precisar de algo sem saber o que é, é, definitivamente o fim da picada’. E ao concluir a frase em um movimentar de lábios, se encolheu ainda mais em seu espaçoso leito floral. Pequeninas margaridas dispostas aleatoriamente sobre o forro. Amarelas e brancas. Floral. Aquela forma fetal, o aconchego que tentava proporcionar a sua mente, era inexistente. Encolhia-se, se retorcia, rolava, cobria a face, largava a almofada, se abraçava, mudava de lado e, em um cansaço duplo, dormiu às 3:43 da madrugada.
Pobre garota.
Mal sabia ela que era tudo uma questão de perspectiva.

Despedida


    Que me faz metade. Meio de um copo vazio. Adeus, adiós. Hasta luego pra nunca mais! Tchau saudade, tchau.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Dialogós, Dialogu. Diálogo. Dia logo. Dia, logo. Conversação.

Ocupou-se, ocupou-me.



- E você gosta de quê?
- Eu gosto de narrativas.
- Ah, eu não tenho tempo pra narrativas. Vida corrida, estudos... Sabe como é, né.
- Sei. Estou me simpatizando por narrativas ultimamente. Minha vida é uma!
- Isso é bom, né?
- É. Antes ela era cheia de espaços vazios.
- Um espaço vazio existe porque alguém dá liberdade a ele... Não?
Estão abertas as portas da liberdade. Onde você adentra com um vôo rasante e faz um pouso sensacional. Ou então atravessa as barreiras como quem não quer nada, assoviando um trecho daquela sua música predileta, qual era mesmo? Aquela que começa com um ta na na... E assim vai. Ou então simplesmente bate no portal. Toc, toc, toc. Ou tic, toc. Cria um compasso, bate palma, chama o coração. Adentrou a vida. Pronto. Danou-se, como diria aquele seu amigo que tem um pé no Nordeste. Danou-se nega do doce! Danou-se porque agora está pra dentro. Adentrou, penetrou, invadiu. Não importa se o meio foi ilícito, agora eu estou aí. Ou melhor, você está aqui, batendo palma no meu coração. Batucando no compasso, como naquela música do tic tic tic tac do meu coração. Sabe qual é, não sabe? Claro que sim. Agora que já entrou, já ocupou, folgou-se e tirou os sapatos, deixou as meias no canto, a bolsa sobre a cadeira de balanço, já se jogou numa cadeira e me pediu o café, já ocupou a minha parte, puxou a minha coberta, me deixou sem dormir porque queria conversar, utilizou o meu pijama e ainda me disse com sagacidade que ele era seu. Agora não dá pra dizer que existe espaço vazio. Ainda podemos, convenhamos, sentar lado a lado no chão, utilizando aquela mesinha de centro como base e escrever o maior dos nossos delírios, compor uma bossa, uma prosa, uma narrativa! Ela ainda não existiu. Podemos fazê-la, você já está aqui mesmo. E não vai desocupar, eu sei. Vai passar o ano novo aí, sei também. Ainda vai me pedir pra lhe trazer um café, como se eu me negasse. E então, existe espaço vazio?
- Não. Me alcança um lápis, por favor?
- Lápis pra quê?
- Vou escrever aqui o que você me lembra, depois de toda essa lamuriação floreada.
- E o que te lembro?
- Verás!!!